pra variar, esse post começa com uma explicação: era pra ter saído em maio. porque em maio fez 10 anos que visitei o deserto do Atacama, no que seria minha primeira viagem solo e uma das mais importantes da minha vida. mas os dias se encheram de acontecimentos e aborrecimentos e não consegui sentar pra escrever porque, de certa forma, tudo doía, inclusive não ter conseguido viajar pro Atacama em maio pra celebrar esse marco.
já falei sobre marcos e símbolos e ciclos em outra ocasião. lê lá e depois volta aqui →
voltou? ótimo.
na sexta passada eu fui a um aniversário e depois de beber 3 cervejas quentes uma amiga pediu pra eu falar pra uma terceira pessoa sobre o Atacama. eu não sabia como a conversa entre elas tinha começado, eu tinha acabado de conhecer aquela terceira pessoa e eu respondi sem pestanejar que “o Atacama mudou minha vida”. dramatics, your honor. pensei por mais um segundo e concluí: “sim, mudou minha vida”. “mas como?”, ela me perguntou.
como?
em 2014 eu era uma pessoa assombrada. não confiava em ninguém, inclusive eu mesma. tinha certeza de que as relações existiam pra ter um fim triste e cheio de mágoa, que ninguém valia o esforço que o amor exige, que o amor em si era uma grande farsa. alguns anos antes eu saí de uma relação cheia de traições e mentiras, e eu acreditava que se fui ferida pelas pessoas que mais amava é porque era só isso que as pessoas tinham a oferecer. e passei a esperar que as outras pessoas que eu amava me ferissem também.
eu não me lembro quando eu decidi viajar, mas de repente já estava tudo certo. passagens compradas, hospedagens feitas, daí minha amiga disse que não poderia mais ir comigo. num primeiro momento eu pensei em desistir e deixar pra outra oportunidade, porque eu não sabia fazer coisas sozinha, muito menos viajar pro deserto e passar 15 dias na minha própria companhia. eu não ia ao cinema sozinha, eu não almoçava sozinha, eu não morava sozinha - os anos que morei em Rio Branco foram tão solitários em tantos aspectos que a perspectiva da solidão me enchia de pavor.
mas eu fui. sozinha.
passei 3 dias em Santiago. conheci uma brasileira no hostel que fiquei hospedada, bati perna, chorei no por do sol do Cerro San Cristóbal, bebi cerveja na rua e fui repreendida por um carabinero, pulei de um taxi em quase movimento porque o motorista saiu do caminho do hostel pra me levar pra outro lugar que eu já havia dito que não queria ir. 3 dias. no 4º dia fui até Isla Negra visitar a casa preferida e última morada do poeta Pablo Neruda, fiquei sentada no túmulo dele por um bom tempo fumando e vendo o Pacífico arrebentar nas rochas da praia. foram dias bons porém cheios de melancolia.
Cerro San Cristóbal
Isla Negra - Casa Museu de Pablo Neruda
no dia de seguir pro Atacama eu quase desisti. acordei 4 da manhã pra esperar o transfer que me levaria ao aeroporto pensando como seria mais simples só voltar pra casa e ser melancólica no meu quarto, sem gastar dinheiro.
no trajeto entre o aroporto de Calama e a vila de San Pedro de Atacama, que serve de base pra explorar o deserto, eu chorei em silêncio e copiosamente. primeiro, acho, por estar realizando um sonho. segundo, tenho certeza, por não estar dividindo aquele momento com ninguém. “felicidade só é real quando compartilhada”, diz aquela frase popularizada por aquele filme que o rapaz rebelde morre sozinho no Alasca (a frase é do Thoreau, eu acho, e hoje em dia acho essa frase um tanto quanto boba e o McCandless mais bobo ainda).
a vila de San Pedro de Atacama tinha ruas de areia e casas de adobe, além do famoso solmáforo (um sistema que informa os níveis de incidência de raios ultravioleta e o tempo de exposição segura pra cada um desses níveis - em um dos dias a luz estava vermelha, ou seja, o nível de raios ultravioleta estava peligroso). fui até a Calle Caracoles, a principal rua da cidade, e fechei os passeios que tinha programado numa agência de viagens, depois andei até a igreja do vilarejo, almocei num restaurante de comida bem caseirinha e voltei pra agência pra fazer o primeiro passeio da viagem. e, bem, foi aí que minha vida mudou.
o vulcão Licancabur, que está em todos os lugares que seu olho alcança
o deserto mais seco do mundo
visitamos uma lagoa de água salgada na qual as pessoas não afundam, tal qual o mar morto. visitamos os ojos del salar, duas lagoas bem redondinhas de água doce e profunda no meio do nada, e finalizamos o dia na Laguna Tebenquiche, o melhor ponto pra se observar o pôr do sol. e, cara, que doideira. enquanto o sol se punha o guia abria uma garrafa de vinho, de pisco, de cerveja, o vento frio cortando nosso rosto, as montanhas da cordilheira dos andes mudando de cor e o guia dizia, rindo, “mira, los colores!”. a água refletindo perfeitamente a montanha colorida pelo sol e pelos mineirais e pela poeira atacamenha.
um dia qualquer na Laguna Tebenquiche
chorei de novo. mas de alumbramento e uma felicidade genuína. não me ressenti por estar sozinha, pensei depois, voltando pro hostel, porque pela primeira vez em muito tempo me sentia viva e conectada a todas as coisas do universo. correndo o risco de soar piegas e clichê, não me senti sozinha porque me senti inteira, num senso mais místico que prático. afinal, a única coisa que precisei pra chegar até ali e presenciar a dança das cores na montanha enquanto o sol brilhava fraco atrás de mim foi de mim mesma.
com o passar dos dias visitando as paisagens mais impossíveis e absurdas, bebendo pisco nos restaurantes da vila, passando mal de soroche, sentindo a amplitude das temperaturas do deserto, dormindo bêbada e cansada e acordando cedo com o lanchinho do hostel me esperando pro próximo passeio eu nem conseguia mais me sentir só. mesmo interagindo com outros turistas nos passeios, ou conversando entre cigarros com os moradores da vila, todos os momentos mais importantes da viagem, todas as vezes que abri a boca estupefata com o que via, todas as vezes que sentia o licancabur de vigia, todas as vezes que cruzei com uma raposa ou uma vicunha ou um condor, todos esses pequenos pedaços dessa experiência eram meus. uma memória que nunca vai mudar, eu pensava. e não, não mudou. eu mudei, a memória continua intacta.









eu também fiz o passeio astronômico, numa das noites mais frias da minha vida, com o céu mais espetacular que existe. e fotografei a via láctea.
pra finalizar a viagem decidi ir ao Salar de Uyuni, na Bolívia. uma travessia de 3 dias pela reserva nacional de fauna andina Eduardo Avaroa, um dia sem banho, outro dia sem luz, numa 4x4 ouvindo Enrique Iglesias com alguns chilenos, uma espanhola e um francês. na 1ª noite pernoitamos num abrigo, a luz acabou por volta da 7 da noite, saí pra fumar e dei de cara com a maior lua da minha vida no meio da escuridão quase absoluta. perdi um compasso. voltei pro meu saco de dormir alugado e pensei em tudo que já tinha me acontecido, em todos os aspectos da minha vida, como eu tinha chegado até ali. como eu tinha deixado de acreditar no amor e na força estando ali, diante de todas as coisas vivas, e me sentindo parte de cada uma delas. como eu pude acreditar um dia que a vida só existe pra acabar quando tem essa aventura inteira no meio dela, essa aventura que é de fato estar vivo e fazer mais do que sobreviver. como aquela lua, naquela noite, existiu só pra mim e pra iluminar minha hora mais escura.
e como foi doce o café da manhã no maior deserto de sal do mundo.
teoricamente eu voltaria pro Atacama no mesmo dia de chegada ao Salar, mas as fronteiras fecharam à noite por conta da neve que caíra, então precisei pernoitar em Uyuni pra partir em segurança no dia seguinte. esbarrei num alemão que me ajudou a impedir minha touca de voar, à noite esbarrei no mesmo alemão num bar e bebemos paceñas e conversamos em qualquer que seja o idioma que viajantes bêbados falam e na manhã seguinte expulsei ele do quarto do hotel antes do meu carro chegar. pegamos um caminho mais curto na volta, passando por povoados de 10 casas e muitas lhamitas enfeitadas, precisamos parar o carro por causa do vento de 80km/h que balançava tudo e criou uma tempestade de areia e quando cheguei em San Pedro do Atacama estava nevando. 1ª vez na vida que eu via neve. Jantei no Adobe, o restaurante mais chique da cidade, comprei uma empanada de carne de lhama que não tive coragem de comer e dei pra um cachorro de rua, quase perdi meu vôo de volta pra Santiago por causa das estradas fechadas e quando vi tava em casa acreditanto na vida de novo.
quinze dias de deserto e o recomeço da minha vida.
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Fiquei obcecada com o Enrique Iglesias e ouvia essa música todos os dias por um tempo depois da viagem.
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Voltei a ler, acredita? Finalmente engrenei o Estação Onze, da Emily St. John Mandel, que foi adaptado pra uma das minhas séries preferidas da vida. Tá rolando.
Tá rolando.
Uouu! Que viagem interna♥️🙏🏻
Sua amiga perdeu uma cia daquelas e paisagens lindas ! Você ganhou presentes do universo e seu coração voltou a pulsar…. Vcs podiam tentar atravessar o deserto de novo e ver o que o universo da pra vocês, o que ele faz com a ousadia !?